Amenda proíbe presos de votar e pode violar Constituição; 822 mil eleitores podem ser excluídos

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Amenda proíbe presos de votar e pode violar Constituição; 822 mil eleitores podem ser excluídos

A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda ao PL Antifacção que proíbe totalmente a participação eleitoral de todos os presos — incluindo os que ainda aguardam julgamento. A mudança, incorporada ao relatório substitutivo do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), foi proposta pelo deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) e aprovada por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção. O impacto é imediato: cerca de 822 mil pessoas detidas provisoriamente, que hoje têm direito ao voto por força da Constituição, terão seus títulos de eleitor cancelados. A medida, porém, entra em choque direto com o artigo 15, inciso III, da Carta Magna de 1988, que só suspende o direito de votar para quem foi condenado com sentença transitada em julgado. O Tribunal Superior Eleitoral já confirmou que, nas eleições municipais de 2024, mais de 6 mil presos provisórios votaram legalmente em todo o país.

Um contrassenso chamado "regalia"

"Não faz sentido o cidadão estar afastado da sociedade, mas poder decidir os rumos da política do seu município, do Estado e até do Brasil", declarou Marcel Van Hattem durante a sessão. Para ele, o voto de presos provisórios é "uma regalia" e "um contrassenso, chega a ser ridículo". A fala ecoa um discurso que ganhou força nos últimos anos: a ideia de que a prisão, mesmo que temporária, deve significar perda de todos os direitos civis. Mas aqui está o ponto crítico: a prisão provisória não é punição. É uma medida cautelar, prevista para garantir a ordem pública ou a instrução criminal. E o princípio da presunção de inocência — pilar da democracia brasileira — é exatamente o que protege esses 822 mil eleitores hoje.

Um voto conscientemente inconstitucional

O mais surpreendente veio do líder do Partido dos Trabalhadores, Lindbergh Farias (RJ). Ele votou a favor da emenda — e disse claramente por quê: "Vamos votar 'sim' sabendo que é inconstitucional." A declaração, rara em plenário, revelou o jogo político por trás da proposta. "Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje acontece o seguinte: quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, já estão querendo antecipar para a prisão provisória a fim de impedir o voto de Bolsonaro." A alusão a Bolsonaro — que responde a processos penais e pode ser preso provisoriamente — não foi acidental. A emenda, embora escrita de forma genérica, tem um alvo claro: quem está preso sem condenação final e tem apoio eleitoral expressivo. A lógica política parece ser: se você não pode ser condenado, então impeça que vote. E isso, para juristas, é um passo perigoso.

Conflito direto com a Constituição

A Constituição de 1988 foi escrita após décadas de ditadura. Um dos seus pilares foi garantir direitos políticos mesmo aos mais marginalizados — inclusive aos presos. O Supremo Tribunal Federal já consolidou isso na Súmula Vinculante nº 14, de 2015: só perde o direito de votar quem teve sentença final. Qualquer tentativa de antecipar essa punição é, tecnicamente, um golpe no estado democrático de direito.

Ivar Hartmann, diretor do Programa de Direito Eleitoral da Fundação Getulio Vargas, foi direto: "Claramente viola o artigo 15 da Constituição Federal e gerará ações diretas de inconstitucionalidade no STF." O Tribunal Superior Eleitoral terá de cancelar, de imediato, os títulos de cerca de 850 mil eleitores — número que já ultrapassa a população de cidades como Florianópolis e Vitória. E isso não é só burocracia. É uma exclusão massiva, feita sem julgamento, sem processo, sem direito à defesa.

O que mais mudou no PL Antifacção

O que mais mudou no PL Antifacção

Enquanto a emenda sobre o voto gerava polêmica, o restante do PL Antifacção foi aprovado com 370 votos a favor. Entre as novas regras: primeiro-ofensores de crimes hediondos terão de cumprir 70% da pena em regime fechado (antes eram 40%); líderes de organizações criminosas em crimes graves passam a cumprir 75% — e perdem o direito à liberdade condicional. O feminicídio, agora, entra nessa mesma categoria. São mudanças duras, mas tecnicamente viáveis. O problema é que elas foram aprovadas junto com uma emenda que, em essência, desconstitui o próprio direito de voto.

Próximos passos: o Senado e a STF

O projeto agora segue para o Senado Federal, onde será analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PP-MG), prometeu agendar as audiências antes de 20 de dezembro. Mas a expectativa é de que a emenda sobre o voto seja bloqueada na comissão — ou, se aprovada, imediatamente contestada no Supremo Tribunal Federal. A história mostra que o STF não hesita em derrubar leis que atacam direitos fundamentais, mesmo quando populares. Em 2021, o tribunal derrubou uma lei que proibia presos de receber visitas familiares. A lógica foi a mesma: prisão não é banimento da cidadania.

Por que isso importa para você

Por que isso importa para você

Essa emenda não afeta só os 822 mil presos. Ela afeta todos nós. Porque se o Congresso pode tirar o voto de alguém só por estar preso — mesmo sem condenação —, amanhã pode tirar o voto de alguém por ser manifestante, por ser jornalista, por ser crítico do governo. A democracia não se baseia em punir, mas em julgar. E o julgamento só começa depois do processo. Se aceitamos que a prisão provisória é sinônimo de perda de direitos, então já não vivemos em uma democracia. Vivemos em um estado de exceção.

Frequently Asked Questions

Quem pode votar hoje, segundo a Constituição?

Atualmente, todos os cidadãos maiores de 16 anos que estão em situação regular perante a Justiça Eleitoral podem votar — exceto os condenados com sentença transitada em julgado. Presos provisórios, mesmo que acusados de crimes graves, mantêm o direito ao voto por força da presunção de inocência, conforme reafirmado pelo TSE e pelo STF. Em 2024, mais de 6 mil presos provisórios votaram nas eleições municipais.

O que acontece se a emenda for aprovada no Senado?

Se aprovada, o TSE terá de cancelar os títulos de cerca de 850 mil eleitores automaticamente. Mas isso não impedirá ações no STF. A medida será imediatamente contestada por partidos, ONGs e entidades de direitos humanos. A expectativa é que o Supremo declare a emenda inconstitucional em poucos meses, como fez com outras restrições semelhantes no passado.

Por que Lindbergh Farias votou a favor de algo inconstitucional?

Farias admitiu que o voto era político, não jurídico. Ele sugeriu que a emenda visa impedir que ex-presidente Bolsonaro vote se for preso provisoriamente. É um cálculo eleitoral: o Novo quer deslegitimar o eleitorado de Bolsonaro, e o PT, mesmo contrário à medida, vê na aprovação uma forma de expor o caráter partidário da proposta. A estratégia é forçar o STF a se posicionar publicamente.

O voto de presos já foi contestado antes?

Sim. Em 2015, o STF rejeitou uma proposta semelhante por 8 a 3. A Súmula Vinculante nº 14 foi criada justamente para evitar esse tipo de tentativa. Antes disso, em 2008, o TSE já havia reafirmado que a prisão provisória não afeta o direito eleitoral. A novidade agora é que o Congresso está tentando mudar a regra por via legislativa, ignorando a jurisprudência consolidada.

Como isso afeta as próximas eleições?

Se a emenda for implementada, cerca de 850 mil votos desaparecerão das urnas — principalmente em estados com alta taxa de prisão provisória, como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Isso pode alterar resultados em cidades pequenas, onde a diferença entre candidatos é de poucos milhares de votos. Mas o maior risco é simbólico: a mensagem de que a cidadania é um privilégio, não um direito.

Existe alguma alternativa para combater crime sem tirar o voto?

Sim. O próprio PL Antifacção já propõe medidas eficazes: aumento de penas, proibição de liberdade condicional para líderes de facções e regime mais rígido para feminicídio. Essas mudanças atacam o crime organizado sem atacar a democracia. Tirar o voto de presos provisórios não reduz a criminalidade — só reduz a representação política. E isso, em uma democracia, é mais perigoso do que qualquer facção.